Compartilhar

O Início
Esta história começa no dia 25 de maio de nas primeiras horas da manhã. Camila, mulher de 60 anos, ajoelhada, ora com devoção durante a consagração, quando sente dores fortes no ventre. Seu filho estava nascendo.

Voltou rapidamente para casa e por sugestão de uma amiga, inspirada em Jesus, quis que seu filho nascesse numa estrebaria.

Assim nasceu Camilo de Léllis, na cidadezinha de Bucchianico, Itália. O pai, João de Léllis, que já não contava ter filhos, exultava de alegria. Era um dos melhores capitães do imperador Carlos V e tinha de ter um herdeiro.

A mãe, apesar de felicíssima, era sempre assolada por um sonho que tivera durante a gravidez, no qual via uma criança trazendo uma cruz vermelha no peito, seguida por um bando de meninos. Seria mais um bando daqueles que infestavam a Itália naquela época?

Camilo, logo se viu, era uma criança terrível. Foi educado com todo o carinho, fez a primeira Comunhão e recebeu o sacramento da Crisma. Apesar das traquinagens, manifestava-se caridoso, amigo dos menos favorecidos e se entristecia ao ver pessoas doentes. Camilo, é bom lembrar, era o nome dado pelos romanos aos que ajudavam os enfermos.

A mãe morreu em 1563, pouco antes de completar 73 anos. O pai, então comandante da fortaleza de Pescara, ia muito pouco a Bucchianico. Levado e irriquieto, o pequeno Camilo, que era cuidado por estranhos, aproveitou a liberdade e daí a aprender a jogar foi um passo, vício que provocou, como se verá, grandes infortúnios.

Nessa época, o século XVI, assistia-se na Europa à degradação dos costumes, da fé e da moral. Camilo foi à escola, que lhe fez muito bem, apesar das peraltices e da vadiagem. Muito inteligente, possuía excelente memória e era extremamente querido pelos colegas.

Às aulas ele resistiria até os 17 anos. Alto e forte, alistou-se em 1567 entre os soldados que os venezianos assalariavam na guerra contra os turcos. O pai retornará a Bucchiannico, decidiu acabar com o tédio e também resolveu lutar contra o Islamismo.

Na viagem até Veneza João de Léllis adoeceu e Camilo teve de voltar para casa. Nas vizinhanças do Santuário de Loreto o pai morreu.

Após a morte de João de Léllis nosso Camilo percebe uma ferida no peito do pé, chaga que marcaria todo o resto de sua vida. Não a tratou como devia e a arranhava constantemente. O resultado foi uma infecção que se perpetuou. Mais tarde, Camilo diria que as chagas o ajudaram a se converter e santificar.

Camilo, um dia, impressionou-se com a modéstia dos franciscanos e sentiu remorso da sua vida mundana e da jogatina. Bateu à porta do convento de S. Bernardino, em Águila, e contou ao padre Frei Paulo Loretano, seu tio materno, a vida torta que levava e o desejo de converter-se. O tio, talvez pela ferida que impediria a vida religiosa, ou por não acreditar na sinceridade do jovem, recusou-o.

Resolveu ir até Roma para se tratar no Hospital de São Tiago, sob a condição de prestar serviços como auxiliar de enfermagem após o tratamento. Camilo poderia ter ficado lá para sempre, mas o gênio forte, as brigas com os enfermeiros e a jogatina acabaram fazendo com que fosse dispensado. Camilo, disseram então, era inepto para o ofício de enfermeiro.

Pura ironia, já que ele seria alguns anos mais tarde o exemplo acabado de enfermeiro, além de um inovador no campo hospitalar Corria o ano de 1569 e Camilo de Léllis beirava os 20 anos.

Expulso do Hospital de São Tiago, ele resolve alistar-se entre os militares a soldo de Veneza. A 11 de fevereiro de 1570 partiu para Zara. O jogo ainda o atormentava. No verão do ano seguinte é transferido para a unidade do exército sediada na ilha de Corfú, cenário no qual ocorreria a histórica batalha de Lepanto.

Uma terrível epidemia que assolava a região faz Camilo adoecer. Chegou a agonizar e a receber os últimos sacramentos. Como por milagre, ele recupera a saúde. No ano seguinte, 1572, de volta ao exército, quase perde a vida em Castelnuovo, durante o assalto dos turcos ao forte de Barbegno. Em 1573 alista-se durante pouco tempo no exército espanhol, ganha um bom dinheiro e mergulha novamente no inferno do jogo.

Degradou-se a ponto de mendicar. Em Nápoles, por onde perambulava, chegou a perder no jogo a própria camisa. A cada desgraça prometia converter-se, mudar de vida, mas o vício sempre falou mais alto.

Antonio Di Nicastro, um bom velho, compadeceu-se da triste situação daquele jovem alto e forte, ofereceu-lhe emprego numa fábrica de vinhos dos Capuchinhos, mas Camilo preferiu a vida de soldado.

Arrependeu-se mais uma vez. Abatido e desiludido retorna ao velho Antonio Di Nicastro. Acolhido com simpatia no Convento dos Capuchinhos, recebe um serviço humilhante: carregar água, pedra e cal.

Por duas vezes quis desistir A primeira: após quinze dias de trabalho pediu folga, recusada. A segunda, ao receber convite de um amigo para novas aventuras.

Em 1575, durante uma missão de transporte de dinheiro e vinho ao Convento Castelo de São Giovanni, conversou demoradamente com Padre Angelo, guardião do convento. Pediu ao padre que orasse por ele. No dia seguinte, já rumando de volta, teve tempo e paisagem para meditar. Desce do cavalo e põe-se a chorar e a bradar contra sua cegueira de não ter conhecido Deus e seus divinos caminhos.

Camilo de Léllis indicou esse dia, 2 de fevereiro de 1575, como a data de sua conversão. Contaria mais tarde que chorou muito ao pé de uma árvore, pedindo a Deus tantas lágrimas quantas fossem necessárias para lavar seus pecados.

Ao retornar para o convento dos Capuchinhos, rogou para ingressar na Ordem. Queria vestir o hábito. Pouco tempo depois veio a autorização. Camilo julgou-se o homem mais feliz do mundo. Mas a chaga do pé atrapalhou-o novamente. Foi dispensado com a promessa de ser recebido como noviço, caso se curasse.
Na cidade de Roma, Camilo procura abrigo e tratamento no Hospital São Giácomo. Queria curar-se e prestar auxílio aos doentes, como fizera antes. Camilo logo entendeu que fora chamado pelo Senhor - estava em um dos maiores hospitais da Itália, com cerca de duzentos doentes, mas os enfermeiros não tinham paciência nem caridade.

No Hospital São Giácomo, Camilo conheceu o Padre Filipe Neri, que o aconselhou a continuar no hospital. Décadas depois o padre Filipe seria canonizado.

Camilo era um anjo da caridade, cuidava mais dos doentes que de si mesmo. Ficou quatro anos no hospital, de 1575 a 1579. Com a chaga curada, retomou o velho sonho de voltar aos Capuchinhos.

Retorna aos Capuchinhos e torna-se então, aos 29 anos, Frei Cristovão. Durou pouco a alegria do noviciado, pois a chaga abriu-se novamente. Abalado e triste Camilo percebeu então que os desígnios de Deus queriam-no de volta ao tratamento dos enfermos.

Foi recebido com festa por todos os diretores e enfermos do Hospital São Giácomo, em Roma. O salário que deveria receber era doado integralmente em benefício do próprio hospital. Com o mordomo do hospital de licença, Camilo foi convidado para o cargo. Afinal, era administrador de raros dotes e tinha a certeza de que, além praticar a enfermagem, faria uma "limpeza" na má conduta da maioria dos funcionários. O exemplo de Camilo logo se espalhou e o dia-a-dia do hospital mudou.

O que fizermos aos enfermos, estaremos fazendo a Deus, dizia sempre. Ele não compreendia como as outras pessoas não podiam cuidar dos enfermos como se fossem seus filhos, ou irmãos.

Apesar de o hospital ter uma capela, Camilo resolve, com a ajuda de amigos, montar um pequeno templo num dos quartos. Prepararam um altar e ali colocam um crucifixo. A idéia era ter um grupo, que além da determinação e caridade, tomasse o trabalho no hospital como obra de Deus.

Intrigas de um funcionário fazem com que o diretor proíba o oratório. Quando Camilo e seus seguidores vão ao quarto para desmontá-lo encontram tudo destroçado, inclusive o crucifixo jogado num canto.

Naquela noite, adormeceu ao lado do crucifixo e pareceu-lhe ver a cabeça de Jesus mover-se e dizer: "Não temas, caminha sempre avante, eu te ajudarei e hei de estar sempre contigo".

Acorda assustado, sente uma paz profunda e revigorado decide enfrentar qualquer obstáculo pelo caminho iniciado. Mesmo desconfiado da visão, afinal estava sonolento, conta aos companheiros e anima-os a continuar a obra, fazendo as reuniões na Capela do hospital.

Aflito com a dúvida da visão, Camilo se põe ao pé do crucifixo e ora ardentemente. Nesse momento se dá, segundo o relato de Camilo, um milagre: Jesus solta uma das mãos da cruz, abraça-o e diz: "De que te afliges? Continua que eu te ajudarei! Esta obra é minha e não tua!"

A cruz vermelha
A cruz vermelha, símbolo dos Camilianos, surgiu em 1586, aprovada pelo Papa Sisto V e logo tornou-se marca de auxílio médico. O sucesso da nova Ordem religiosa era tamanho que logo surgiram filas de candidatos ao noviciado.

Vários casos de tratamento a enfermos, em relação aos quais ninguém chegaria próximo, foram relatados, o que transmitia ao mundo a coragem e a certeza de que os Camilianos eram apoiados pelas Mãos Divinas.

Não foram poucos também os casos de intrigas familiares com relação às muitas heranças que homens de poder, prestígio e dinheiro deixaram para a Ordem. Camilo sempre dizia aos advogados que a defendiam: "Se for este o caminho que o Senhor encontrou para nos ajudar, e ganharmos a causa, eu ficarei feliz. Também ficarei feliz se não ganharmos, pois terei a certeza que se tratava de uma injustiça e que o Senhor nunca nos faltará." Nunca faltava dinheiro para a Ordem.

Em 1595, pela primeira vez durante uma guerra, o Papa Clemente VIII convidou Camilo e seus filhos para dar assistência espiritual e médica aos soldados. Era evidente o alívio dos soldados quando avistavam a Cruz Vermelha nos hábitos dos padres camilianos.

Sofreu como um doente
Camilo sofreu tanto quanto os seus mais agonizantes enfermos. Foram cinco as misericórdias de Camilo de Léllis, como ele mesmo costumava chamar as suas doenças: a chaga do pé, que o acompanhou por toda a vida; uma hérnia inguinal que o incomodou durante 38 anos; dois calos enormes na planta dos pés; agudas cólicas renais durante dez anos; e um fastio (rejeição alimentar), que lhe incomodou até seus últimos dias.

A opinião dos médicos a respeito de Camilo era unânime: com todos os problemas, esse homem deveria ter vivido mais de dois terços de sua vida em leitos hospitalares.

Por volta de 1606, cansado e sentindo que aquele seria o momento de retirar-se, Camilo pede renúncia do cargo de diretor-geral da Ordem, deixando quinze casas fundadas, oito hospitais, 242 religiosos professores e 80 noviços. Seus "filhos" seriam ainda em maior número, não fosse a morte de 170 durante as cruzadas.

Mesmo tendo em seu círculo de amizades autoridades do clero, do governo e da alta sociedade, quis desempenhar as tarefas mais humildes.

Perto do fim

Nos primeiros dias de julho de 1614, já no seu leito de morte, recebeu o viático (última comunhão antes da morte) e deixou as seguintes recomendações:

"Observai bem as regras. Haja entre vós uma grande união e muito amor. Amai, e muito, a nossa Ordem, e dedicai-vos ao apostolado dos enfermos. Trabalhai com muita alegria nesta vinha do Senhor

Se Deus me levar para o Céu, vos hei de ajudar muito de lá. As perseguições que sofreu nossa obra vieram do ódio que o demonio tem ao ver quantas almas lhe escaparam pelas garras. E já que Deus se serviu de mim, vilíssimo pecador para fundar miraculosamente esta Ordem, Ele há de propagá-las para o bem de muitas almas pelo mundo inteiro.

Meus padres e queridos irmãos: eu peço misericórdia a Deus e perdão ao padre Geral aqui presente e a todos vós, de todo mau exemplo que eu pudesse ter dado, talvez mais pela minha ignorância, do que pela má vontade. Enfim, eu vos concedo da parte de Deus, como vosso Pai, em nome da Santíssima Trindade e da bem-aventurada Virgem Maria, a vós aqui presentes, aos ausentes e aos futuros, mil bênçãos".

Camilo de Léllis morreu no dia 14 de julho de 1614. Quando preparavam o corpo para o funeral, os médicos boquiabertos notaram que a chaga havia desaparecido. Multidões acompanharam o velório e o enterro.

Em 1746, durante uma festa dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, o Papa Bento XIV no dia 29 de junho, declara Santo o nome de Camilo de Léllis.

Em 1886, Leão XIII declarou São Camilo, juntamente com São João de Deus, Celestes protetores de todos os enfermos e hospitais do mundo católico.